A fronteira simbólica e a morte como pena subterrânea

Vidas importam. Nem todas. No Brasil e não apenas nele. Foi o que nos relembrou, faz pouco, o resiliente movimento negro estadunidense.

O momento atual exprime, como poucas vezes antes, este traço que nos conforma como sociedade. Estamos metidos numa ambiência tal, marcada pelo desprezo por certas vidas, por certas formas de existência, que, apesar de humanas, não têm valor. Não merecem nem resistir. São a underclass, a intraduzível “ralé estrutural”, indigna de vida para a necropolítica criminal brasileira e suas penas subterrâneas.

Experimentamos já um tempo em que a fraude processual, cujo modus operandi envolvia conduzir cadáveres ao hospital, não é sequer tentada. Está permitido matar “bandidos”. O comando aprecia – talvez até conferindo prêmios, como reconhecidamente aconteceu no passado com a gratificação faroeste. A sociedade? A sociedade aprova, aplaude até.

Não tenho dúvidas que é isto que autorizou mais uma imposição de pena de morte por parte das forças de segurança pública. Desta vez aos olhos, iluminados pelo sol das 14 horas de um domingo , de todas e todos quantos não queiram se preservar do espetáculo macabro difundido por vídeos e fotos. Isto sem falar nos diversos transeuntes que a tudo assistiram, apavorados por figurarem dentro das diversas linhas de tiro possíveis.

Imagens e algumas poucas informações mais podem ser encontradas aqui e aqui.

Sim, falo do episódio transcorrido na simbólica transição entre as cidades de Sarandi e Maringá. Como se o fim daqueles supostos delinquentes – entendam: só me comprometeria em chamá-los de criminosos, como faz tranquilamente a imprensa, se os três jovens (negros, que dúvida!) mortos no último 17/10, pela Polícia Militar, tivessem sido julgados, e em definitivo, pelos roubos que quiçá cometeram - não pudesse conspurcar a invejada Maringá. Mesmo assim, na condição, talvez, de “bandidos”, com o reconhecimento judicial devido, é que passariam a merecer pena. Nunca a de morte porque a ordem jurídica brasileira não a contempla. Salvo na única exceção envolvendo guerra declarada e para pouquíssimas hipóteses, todas em torno da prática da traição por parte de nacional militar.

A polícia não demorou a apresentar a justificativa de que reagiu a disparos dados pelos rapazes. Mesmo assim, o excesso doloso é incontornável, e se confirma pelas dezenas de tiros dados mais, a partir de verdadeiro paredão, depois que os rapazes haviam sido atingidos, quando eventual resistência já se afigurava improvável.

O devaneio governista, expresso na ambição de ampliar as hipóteses de legítima defesa apenas para agentes de segurança pública, tampouco socorre os responsáveis pelo fuzilamento dominical: pois legítima defesa continua a exigir moderação, mesmo na hipótese – inexistente no caso -, de vítima mantida refém.

Parece haver um áudio de um dos jovens circulando, no qual ele informava a pessoa querida, hoje enlutada, que infelizmente seria preso. Esperava a pobre alma que a polícia cumprisse com o papel mínimo de abster-se de impor-lhe uma pena de morte por fuzilamento.

Os rapazes mortos importavam, não apenas para suas famílias. Mas também para o conjunto normativo que ainda nos governa. Execução sumária traduz violação ao primeiro direito humano. O direito à vida. Advogados, advogadas e a entidade que os representa, têm o dever legal e ético, além de não concordar, de não silenciar a respeito. Modestamente, estou cumprindo com o meu.

Marco Alexandre Souza-Serra, é advogado criminal, professor e pesquisador nas áreas de direito, processo penal e direitos humanos.
Atualmente é pré-candidato à presidente da OAB de Maringá pelo movimento Algo Novo.

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