Mais de 500 anos, uma divisa

Escrevo essas breves linhas premido pelo julgamento que o STF, já com atraso, deve realizar a respeito dos direitos territoriais indígenas. O faço também absolutamente admirado com a mobilização que os povos indígenas realizam na centralizada e árida capital desta triste república, que de democrática talvez guarde apenas o processo eleitoral. E isto com muitas ressalvas: fosse minimamente sério, como tal capaz de efetivamente veicular uma romântica e sempre incerta vontade geral rousseauniana, e o sistema eleitoral brasileiro não permitiria que tivéssemos um congresso como o que temos, muito menos um chefe da nação como o atual. Convencer-se disto não parece difícil: mesmo com a anomia, inclusive administrativa, instaurada no país, o pacto sumamente fisiológico entabulado com o deletério Centrão, garantindo a este acesso inédito ao cofre de emendas parlamentares, tem interditado qualquer comunicação entre o parlamento brasileiro e o sentimento popular, seja lá o que este hoje represente.

Como ecoa desde o Planalto Central e de todos os rincões do país, o Brasil é terra indígena. E o é originariamente, muito antes que neste território aportassem os invasores responsáveis por quinhentos anos infelizmente sintetizados pela divisa do estupro: das mulheres indígenas, também das escravizadas, e, não menos importante, de uma outra entidade feminina que é a Mãe Terra, a Pacha Mama dos povos originários andinos.

Nessa direção, parece inconcebível que um direito congênito, reconhecido aos povos indígenas dos territórios que hoje chamamos Brasil desde que éramos reconhecidamente colônia, tenha sua eficácia interditada. E que, para tanto, se recorra a um casuísmo desprovido de sustentação no interior de toda essa tradição legal, que a rigor não experimentou qualquer interrupção em sua existência.

Aprendi com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro que o vocábulo indígena serve para designar, antes de tudo, aquela pessoa que vive na terra de que é originária, antes mesmo de qualquer processo colonizador. Pouco ou nada tem a ver com a palavra índio, que parece mesmo remeter ao tremendo equívoco dos navegadores que, em busca de um caminho alternativo às índias, vieram dar cá em Abya Yala, espaço geográfico que também responde por América, principalmente para os colonizadores.

O STF mais uma vez adiou a conclusão do julgamento que tanto interessa aos povos indígenas. Até dá para entender a covardia. Principalmente quando se está diante da maior manifestação popular que Brasília experimenta desde o processo constituinte de 1987. Ou melhor: do maior, mais longevo e resiliente movimento social que este país já conheceu.

Marco Alexandre Souza-Serra
Advogado
Professor e pesquisador nas áreas de direito e processo penal, criminologia e direitos humanos
Doutor em direito penal e pós-doutor em criminologia

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