Sobre a criminalização da posse de drogas ilícitas

É de conhecimento mediano, e não apenas entre a comunidade jurídica, o quanto tarda para que o Supremo Tribunal Federal conclua o julgamento do Recurso Extraordinário n. 635.659, com repercussão geral reconhecida. Nele, dos três votos já apresentados, todos foram favoráveis ao reconhecimento da inconstitucionalidade da criminalização da posse para consumo de droga tornada ilícita , ao menos quando a droga sobre a qual o sujeito tiver disposição seja a maconha.

No caso do relator deste recurso, ministro Gilmar Mendes, declarou-se “a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art 28 da Lei 11.343/2006, de forma a afastar do referido dispositivo todo e qualquer efeito de natureza penal.” Segundo a votar, o ministro Edson Fachin, também declarou a inconstitucionalidade sem redução de texto do mesmo art 28, com a ressalva de que assim entendia apenas quanto à maconha como objeto material da conduta. Finalmente, votou o ministro Roberto Barroso, propondo tese de seguinte teor, como é de seu feitio, não estabelecendo distinção entre maconha e as demais drogas reputadas ilícitas:

É inconstitucional a tipificação das condutas previstas no artigo 28 da Lei n. 11.343/2006, que criminalizam o porte de drogas para consumo pessoal. Para os fins da Lei nº 11.343/2006, será presumido usuário o indivíduo que estiver em posse de até 25 gramas de maconha ou de seis plantas fêmeas. O juiz poderá considerar, à luz do caso concreto, (i) a atipicidade de condutas que envolvam quantidades mais elevadas, pela destinação a uso próprio, e (ii) a caracterização das condutas previstas no art. 33 (tráfico) da mesma Lei mesmo na posse de quantidades menores de 25 gramas, estabelecendo-se nesta hipótese um ônus argumentativo mais pesado para a acusação e órgãos julgadores.

O julgamento do RE 635.659 aguarda voltar à pauta do plenário do STF desde o segundo semestre de 2015. O ministro Alexandre de Moraes, em cujo gabinete o processo se encontra por força de vista, já noticiou ter voto pronto e liberado para recomeço da análise do caso no também já distante ano de 2018.

Enquanto isso, fervilham Brasil afora decisões que se coadunam com a direção até aqui indicada pelo STF. Em geral reconhecendo que a posse de maconha para consumo não pode ser criminalizada sem violar, entre outros vários postulados, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação, e, no campo propriamente penal, o princípio da lesividade -, segundo o qual não se criminaliza conduta sem que essa seja comprovadamente eficaz para lesar ou submeter a perigo determinado bem jurídico.

Na verdade, esta inclinação que agora se divisa no Brasil não é propriamente original, muito menos de vanguarda. Ela se inscreve numa tendência de nível internacional, que envolve desde países da Europa, a exemplo de Holanda, Portugal e Espanha, passa por vários estados dos Estados Unidos e alcança a América Latina. Em nosso subcontinente difunde-se, mesmo que com nuances, por Argentina e Uruguai – este último, o primeiro país do mundo a não apenas descriminalizar o uso pessoal da maconha, mas a legalizar sua produção, comercialização e consumo -, com destaque recente para o México, país em que a Suprema Corte de Justicia de la Nación estabeleceu, no último mês de junho, que “el consumo personal de marihuana con fines lúdicos y recreativos”[1] é constitucionalmente adequado. Com isso o tribunal mexicano estabeleceu a possibilidade de o órgão público responsável outorgar permissões a pessoas maiores e capazes para autoconsumo de cannabis.

Sobejam, como visto, razões jurídicas para invalidar o tratamento penal dado ao usuário de drogas consideradas ilícitas, não apenas a maconha. Motivos metajurídicos também se contam, a exemplo do que sucede com o estímulo que o proibicionismo necessariamente implica para a violência letal e para a corrupção dos agentes públicos legalmente encarregados de coibi-la.

Por razões insondáveis, contudo, o processo não volta à pauta. Como sucede com o desastrado combate à pandemia da Covid-19 que hoje divisamos, outras tantas vidas serão perdidas enquanto aquilo que já chamei de “subsistema penal criminal de drogas” brasileiro não for transformado.[2]

[1] Disponível em: https://www.scjn.gob.mx/transparencia/lo-mas-solicitado/2019-1 Acesso em: 8 jul. 2021.

[2] SOUZA-SERRA, Marco Alexandre. O subsistema penal de drogas no marco de dez anos de sua vigência. 10 anos da lei de drogas: aspectos criminológicos, dogmáticos e político-criminais. CARVALHO, Érika Mendes de; ÁVILA, Gustavo Noronha de (orgs). Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016, p. 305-327.

Marco Alexandre Souza-Serra
Advogado
Professor e pesquisador nas áreas criminal e de Direitos Humanos
Doutor em direito penal e pós-doutor em criminologia

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